RESUMO

Este artigo visa refletir sobre as relações da produção do mercado editorial brasileiro atual com a “cultura de massa”, por meio da análise das principais questões levantadas a partir dos argumentos apresentados no tradicional embate entre Apocalípticos e Integrados.

Palavras-chave: Cultura de massa; Indústria Cultural; Mercado Editorial.

1. INTRODUÇÃO

Em dado momento de “Se um viajante numa noite de inverno”, Italo Calvino narra a história de dois escritores, habitantes de dois chalés situados em vertentes opostas de um mesmo vale, que se observam reciprocamente em horários alternados. Um deles é um escritor produtivo, o outro, um escritor atormentado.

O escritor atormentado observa o escritor produtivo encher de linhas uniformes as páginas e fazer crescer a pilha de folhas bem-arrumadas. Dentre em pouco, o livro estará concluído: certamente um novo romance de sucesso – é o que pensa o escritor atormentado, com uma ponta de desdém, mas também com inveja. Ele considera o escritor produtivo nada mais que um hábil artesão, capaz de confeccionar em série romances que atendem ao gosto do público; mas não consegue reprimir um forte sentimento de inveja por um homem que se exprime com tão metódica segurança. Não é apenas inveja o que sente, é também admiração sincera: no modo com que aquele homem põe todas as suas energias no escrever, há certamente uma generosidade, uma confiança no ato de comunicar, de dar aos outros aquilo que esperam dele, sem interpor problemas de consciência. O escritor atormentado pagaria muito para parecer-se com o escritor produtivo; gostaria de tomá-lo por modelo; doravante sua maior aspiração é tornar-se igual a ele. (…)

O escritor produtivo observa o escritor atormentado enquanto este se acomoda à escrivaninha, rói as unhas, tem comichões, arranca uma folha, levanta-se para ir à cozinha fazer café, depois chá preto, depois chá de camomila, lê um poema de Holderlin (embora esteja claro que Holderlin não tem nada a ver com o que ele está escrevendo), torna a copiar uma página já escrita e depois a risca linha por linha, telefona para a lavanderia (mesmo sabendo que as calças azuis não ficariam prontas antes de quinta-feira), toma algumas notas que não serão úteis agora, talvez só mais tarde, vai consultar a enciclopédia no verbete “Tasmânia”, rasga duas folhas, põe na vitrola um disco de Ravel. O escritor produtivo jamais gostou das obras do escritor atormentado; quando as lê, sempre lhe parece estar prestes a chegar ao ponto decisivo, mas depois esse ponto lhe escapa, e sobra apenas uma sensação de mal-estar. Mas, no momento em que o vê escrever, sente que esse homem se debate com algo de obscuro, um emaranhado, um caminho a ser aberto que ele não sabe aonde conduz; às vezes, parece-lhe que o vê caminhar sobre uma corda suspensa no vazio, e é tomado por um sentimento de admiração. Não só admiração: de inveja também, porque sente que seu trabalho é limitado e superficial se comparado ao que o escritor atormentado está procurando.

Esta pequena parábola, contada dentro de uma narrativa maior, ilustra com precisão um dos grandes debates do século XX, cujas origens remontam há muito antes, mas chegam ao ápice nas polêmicas sobre “cultura de massa” e “níveis de cultura”. Por meio da inveja/admiração destes dois personagens, um a serviço da baixa cultura, e outro, a serviço da alta cultura, percebemos que os dois autores desejam na verdade estar do outro lado, obtendo aquilo que não possuem: o sucesso econômico ou o reconhecimento dos pares. Calvino leva ao extremo a questão dos níveis de cultura — não considerando a média cultura —, mas nos permite entrever, pela ótica de dois escritores, a cisão que assombra nosso imaginário, como se fosse possível estabelecer claramente valores para produções culturais e manifestações artísticas.

Esta é uma das grandes questões sobre a qual se debruçam diversos pensadores da comunicação no século XX, por exemplo, os teóricos da Escola de Frankfurt. Contudo, talvez a obra mais seminal produzida sobre o tema seja Cultura de Massa, organizada por Bernard Rosenberg e David White, que inspirou Umberto Eco a produzir seu reconhecido ensaio Apocalípticos e Integrados, tornando-se tão importante — ou mais — quanto livro que lhe serviu de base.

Tendo isto em consideração, a partir deste livro de Eco, buscaremos observar e levantar questionamentos sobre a forma como o mercado editorial brasileiro se relaciona com a “cultura de massa”, submetendo seu processo produtivo aos argumentos de acusação e defesa da mesma.

2. O MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO

No dia 13 de março de 1808, cinco dias após a chegada da família real ao Brasil, o príncipe regente dom João assinou um decreto instituindo a Impressa Régia no Rio de Janeiro, encerrando um longo período de interdição à publicação na então colônia, dando início ao que podemos considerar o nascimento do mercado editorial brasileiro

[ref]ABREU. Márcia. Duzentos anos: os primeiros livros brasileiros. In BRAGANÇA, A., ABREU. M. Impresso no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2010.[/ref]— apesar de termos registros anteriores de tipografias em funcionamento, como a de Antônio Isidoro da Fonseca
[ref]HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. 2ª. ed. São Paulo: EdUsp, 2005.[/ref].

A princípio, a casa impressora real estaria destinada a publicar os papéis oficiais do governo e “todas e quaisquer obras”, uma vez que ainda não estava permitido o estabelecimento de outras tipografias, sendo a atividade exclusiva da Imprensa Régia. Além de legislação e papéis diplomáticos, imprimiu-se também uma grande sorte de escritos, de livros de belas-artes a livros didáticos, passando por obras de Medicina, Direito, História, Teologia, além de periódicos.

Historicamente, o período de instalação da imprensa no Brasil, remonta a um estágio avançado da produção mundial de livros, especialmente comparando-se com a Europa. Segundo Barbier

[ref]BARBIER, Frédéric. História do livro. São Paulo: Paulistana, 2008.[/ref], tal momento, estaria situado dentro do que ele chama de a “segunda revolução do livro”, período compreendido entre 1760 e 1914, caracterizado pela invenção da difusão de massa. Nesta linha temporal desenvolvida por ele, observamos a história dos livros se desenvolvendo orientada por suas técnicas de produção que, por sua vez, alteram nossa forma de ler e perceber os livros, mudando hábitos de consumo e mesmo de produção de textos. Acompanhamos a evolução dos suportes desde os primeiros escritos em pedras e blocos de argila, passando ao papiro, ao pergaminho, ao papel; a evolução dos formatos, rolos, a grande criação do códice — que permanece até hoje, desde o século V. Temos então a célebre invenção dos tipos móveis por Gutemberg, tida como “a primeira revolução do livro”, que gradualmente cria as condições de possibilidade para o surgimento e ampliação de um público leitor, que vai crescendo conforme se melhoram as condições de alfabetização.

No Brasil do século XIX, o analfabetismo ainda era enorme e nossos principais leitores eram os portugueses que chegaram acompanhando a família real e uma pequena elite intelectual já existente. Segundo Hallewell, a população do Rio de Janeiro estimada em 1808 era de 60.000 habitantes, tendo aumentado para quase 80.000 no censo realizado em 1821. Já o número de livrarias sobe de duas, em 1808, para doze, em 1816. Estatísticas seguramente aumentadas por conta da chegada da corte.

A partir de 1821, com o fim da censura e do monopólio do governo na impressão, novas oficinas tipográficas se instalam no território, expandindo-se também para outras regiões — Minas Gerais, Pernambuco, São Paulo, Pará, Rio Grande do Sul —, permitindo ainda mais a ampliação de leitores no Brasil, embora ainda em número muito reduzido.

É somente a partir do século XX, especificamente após a década de 20, em consequência dos efeitos estimulantes que a Primeira Guerra Mundial teve sobre a indústria brasileira, é que podemos pensar a produção do livro em larga escala.

O grande pioneiro para esta expansão foi Monteiro Lobato, que “logo se deu conta que o mais sério problema que o livro enfrentava no Brasil era a falta de pontos de venda” (Hallewell, p.357), pois existiam somente 32 livrarias na capital. Então à frente da Revista do Brasil, escreveu aos agentes postais do Brasil “solicitando o nome e endereço de bancas de jornal, papelarias, farmácias ou armazéns que pudessem estar interessados em vender livros” (Idem), estendendo significativamente seus pontos de venda, por meio uma rede de quase dois mil distribuidores espalhados pelo país, possibilitando assim, o acesso da população em geral as obras produzidas por ele — e por outros.

Compreendido o processo histórico que permitiu a criação de uma massa leitora no Brasil, é preciso analisar como os editores passaram a se posicionar para produzir conteúdos ao grande público então existente.

Conforme esperado de instituições inseridas no modelo capitalista, os editores e as casas editoriais brasileiras buscavam o lucro e optaram por seguir os tradicionais modelos europeus, especialmente através da tradução de textos bem sucedidos no exterior, embora logo autores nacionais começassem a ser revelados. Analogamente ao que aconteceu na França, Alemanha e outros países do velho continente, rapidamente instituiu-se um mercado para os clássicos universais — nomes já consagrados —, os livros didáticos, as obras de interesse geral, os livros infantis, evitando-se sempre o risco da publicação de nomes completamente novos.

Alguns editores visionários, como o próprio Monteiro Lobato, Octalles Ferreira, José Bertaso, Érico Veríssimo, José Olympio, Ênio da Silveira, entre outros, preocuparam-se também com a descoberta de novos talentos, instituindo um modelo editorial que permaneceu vigente durante quase todo século XX, até a chegada dos grandes conglomerados editoriais, que alterariam radicalmente o cenário mundial da produção de livros. Tal modelo permitia que os livros de maior vendagem, os ditos best-sellers, gerassem lucro suficiente à editora de forma que ela pudesse correr o risco de publicar novos autores, possibilitando a descoberta de autores desconhecidos. Além dos best-sellers, os editores também mantinham os chamados livros de “fundo de catálogo”, que não vendiam necessariamente milhares de exemplares, mas desempenhavam uma venda regular e constante, garantindo sempre algum lucro ao editor — livros de referência, clássicos da literatura.

Embora existentes há mais de 50 anos, foi somente no final do século XX, que os grandes conglomerados internacionais de editoras começaram a se interessar pelo Brasil. Utilizando-se de estratégias diferentes, as multinacionais aportaram de vez no país, transformando definitivamente o cenário editorial brasileiro. Algumas, como o grupo Planeta, abriram seus próprios braços editoriais. Outras optaram por ingressar no mercado comprando editoras existentes, como a aquisição da Companhia das Letras pelo grupo Penguin Random House. Independentemente do modo como as empresas internacionais se instalaram, a produção de livros do país passou a seguir os modelos de produção de suas matrizes, orientados quase exclusivamente para o “lucro máximo e a qualquer custo”.

A principal consequência prática observada na produção orientada por este modelo, é que todos os livros agora precisariam gerar lucro, tornando impraticável o antigo modelo no qual os best-sellers permitiriam a assunção de riscos para encontrar novos talentos

[ref]THOMPSON, John B. Mercadores de cultura. São Paulo: EdUnesp, 2013.[/ref]. Felizmente, esta nova política de publicação permitiu que o mercado se reinventasse através de deslocamentos de atividades, nos quais pequenas e médias editoras pudessem sobreviver através da publicação de obras que não mais interessavam aos grandes grupos, garantindo a sobrevivência da bibliodiversidade.

Assim, considerando este panorama da evolução do mercado editorial brasileiro, atualmente inserido em um contexto internacional, observemos de que forma ele se relaciona com a produção de uma “cultura de massa”.

3. CULTURA DE MASSA: 15 ARGUMENTOS DE ACUSAÇÃO

Verificamos anteriormente como o mercado editorial brasileiro foi se desenvolvendo para a formação de um amplo público leitor, para isso, orientando sua produção cada vez mais para atingir uma grande massa. Obviamente, este modelo seguido trouxe consequências sobre o que foi produzido e publicado até hoje no Brasil.

Conforme já citado, Umberto Eco apresenta em “Apocalípticos e Integrados”

[ref]ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Perspectiva, 1979.[/ref] os principais argumentos contra e a favor da cultura de massa. Examinemos tais argumentos e vejamos o quanto se pode perceber de sua influência no mercado editorial brasileiro.

A primeira das quinze peças de acusação considera que os meios de massa “dirigem-se a um público heterogêneo, e especificam-se segundo ‘médias de gosto’ evitando as soluções originais.” De modo geral, o que observamos durante a formação do público de massa de leitores é que seus gostos eram considerados apenas em parte, tomando como base inicial o “gosto médio” de leitores de outros países, acarretando em grandes quantidades de publicações de traduções. De fato, o público heterogêneo, foi tratado por muitos anos por sua “média de gosto”, até que alguns poucos editores se arriscaram na tentativa publicar obras mais direcionadas a públicos mais específicos.

A segunda acusação, afirma que a orientação de publicação para a “média de gosto” cria uma cultura homogeneizante, destruindo “características culturais próprias de cada grupo étnico”. A dinâmica estabelecida pelo mercado brasileiro transcendeu a simples criação dessa cultura homogeneizante. Ao invés de termos a supressão das características culturais próprias, o que aconteceu foi a massificação das características dos grupos étnicos, o que pode ser facilmente comprovado pelo grande boom das produções de caráter regionalistas — Rachel de Queirós, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Jorge Amado.

A seguir, Eco aponta que o público, inconsciente de si mesmo como grupo social, não pode manifestar suas exigências nos confrontos com a cultura de massa, sendo obrigado a aceitar as publicações que lhes são propostas pelos meios de massa. Apesar das ferramentas precárias para a mensuração do gosto das massas, compreender o que o grande público demandava sempre foi uma das principais preocupações dos editores brasileiros. A imposição de uma “cultura superior” de modo vertical, em geral, nunca esteve nos planos dos produtores de livro do país. Com o aprimoramento das técnicas para se descobrir o que o leitor deseja — pesquisas de opinião, relatórios de venda, etc. — os editores procuraram seguir seu público, oferecendo o que era demandado. Com o advento da internet, o modelo de “broadcasting”, emprestando-nos de um termo televisivo, no qual o espectador apenas recebe informações, assume papel central na produção de conteúdo, consequentemente, permitindo-se conhecer plenamente em suas preferências mais profundas. Em o “Mundo dos Bens”, Douglas e Isherwood

[ref]DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. O Mundo dos Bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.[/ref] estabelecem três etapas do consumo que o mercado editorial brasileiro pareceu acompanhar. Em um primeiro momento, o produtor/editor ditava o que deveria ser consumido — pela pouca oferta disponível. Em um segundo momento, temos uma grande oferta, mas poucos pontos de venda, tendo os varejistas assumindo a hegemonia do que o público deveria consumir. No terceiro estágio, com ampla oferta e muitos pontos de venda, é o consumidor/leitor quem passa a escolher o que deseja
[ref]A questão sobre a soberania de escolha do consumidor é um pouco mais complexa, pois leva precisa levar em conta fatores sociológicos sobre os quais diferentes vertentes de teorias de consumo divergem, mas de forma simplificada, a analogia nos serve como ilustração.[/ref].

Outro ponto levantado pela acusação é que a cultura de massa apenas difundiria aquilo que já é conhecido, simplesmente transferindo os estilemas do nível de cultura superior para o inferior, desenvolvendo funções meramente conservadoras. Para nos aprofundarmos, teríamos que retomar alguns conceitos relativos aos níveis de cultura. Contudo, para não nos alongarmos demasiadamente em uma questão que o próprio Eco coloca como superada, exemplificaremos pela produção editorial as razões pelas quais não podemos prosseguir o debate por este caminho. Na lógica da publicação de títulos destinados ao consumo de alta ou baixa cultura, o que se verifica é que o público consumidor não respeita estes rótulos que são impostos aos livros, ou seja, muitas vezes a massa transforma obras destinadas ao público de elite em verdadeiros best-sellers (clássicos da literatura) e, de igual forma, obras concebidas para massa são frequentemente adquiridas e admiradas pelos leitores mais exigentes (romances policiais, por exemplo, ou livros em formato de bolso). Por estas transfigurações, a proposta original de classificação cultural por níveis não se sustenta quando submetida aos leitores, que, além de consumir aquilo que já é conhecido, também almeja o novo (ficções científicas, fantasia).

[ref]Tal explicação responde também a oitava e nona acusações, sobre o nivelamento do nível superior de cultura com outros produtos de entretenimento, e de que os meios de massa desencorajam a reflexão e o “esforço pessoal pela posse de uma nova experiência”.[/ref]

A cultura de massa também seria responsável por difundir apenas emoções pré-fabricadas, que ao invés de simbolizadas por uma representação, seriam entregues já confeccionadas — na literatura seriam os lugares-comuns, estereótipos, arquétipos, clichês. Devido ao fato de a linguagem nos permitir narrar ou descrever um fato de diversas maneiras, a transformação dos símbolos alfabéticos em palavras, sentenças e frases, carrega em si um forte contexto de interpretação que, por mais direto que seja, implica em uma mediação — a interpretação do leitor. Evidentemente, na literatura podemos dizer as coisas indireta ou diretamente, como “a neve branca caia sobre a relva e as pessoas abrigavam-se em suas casas ao redor da chama das lareiras acesas” ou “era inverno e fazia frio” — diferentes formas de dizer um mesmo fato. Podem-se descrever emoções ou características individuais também indireta ou diretamente: “correndo pela orla em seu jogging diário, Cláudio viu-se ultrapassado por uma jovem, o que o fez acelerar a marcha para conseguir novamente a dianteira” ou “Cláudio era competitivo”. A questão aqui presente é o papel da imaginação do leitor na interpretação do texto. Dar ou não as informações prontas ao leitor, no caso dos livros, é antes uma questão de estilo pessoal do que de direcionamento para grandes massas, muito embora os autores possam ser instruídos pelos editores para escrever de um ou outro modo, em conformidade com a atual predileção da maioria dos leitores.

Seguindo as necessidades de mercado e inseridos em um circuito comercial, os editores submetem-se à “lei de oferta e demanda”. A cultura de massa é então acusada de, por meio de ações persuasivas de publicidades, sugerir ao público o que ele deve desejar. Neste ponto, apesar de observamos no processo de formação do mercado brasileiro uma tendência a obedecer às leis de mercado, não podemos aferir que seja possível criar desejo no consumidor/leitor (DOUGLAS e ISHERWOOD).

A sétima acusação apresentada é que “mesmo quando difundem os produtos da cultura superior, difundem-nos nivelados e ‘condensados’ a fim de não provocarem nenhum esforço por parte do fruidor; o pensamento é resumido em ‘fórmulas’; os produtos da arte são antologizados e comunicados em pequenas doses”. Esta questão é bastante delicada, pois o mercado editorial se comporta de modo ambíguo. Por um lado, esta difusão é claramente confirmada pelo enorme sucesso dos livros de divulgação científica — muitas vezes escritos por jornalistas, como a trilogia “1808”, “1822”, “1889”, de Laurentino Gomes; a trilogia “História Politicamente Incorreta do Brasil”, “H.P.I. da América Latina” e “H.P.I.do Mundo”, de Leandro Narloch. Mesmo temas mais ásperos, por exemplo, a física — “Uma breve história do tempo”, Stephen Hawking —, quando finalmente ganham uma roupagem mais acessível, tendem a despertar interesse. É fácil observar também o sucesso comercial de antologias de contos e poemas — Os Melhores jovens Escritores Brasileiros, publicados pela internacionalmente famosa revista GRANTA; os Cem melhores Poemas Brasileiros do Século, de Italo Moriconi. Em contrapartida, observamos uma tendência ao colecionismo, ao consumo de antologias de obras completas, de textos clássicos publicados integralmente, de traduções feitas diretamente do idioma original — autores russos, eslavos, escandinavos, que antes eram traduzidos do francês ou do inglês. Mesmo as histórias em quadrinhos, outrora tidas como publicações menores, atualmente adquiriam um status de alta cultura, cujas adaptações não visam simplificar as obras, mas apenas se adequar a uma nova linguagem, muitas vezes mais complexa que a própria escrita original. Os delgados folhetins do século XVIII se tornaram espessos calhamaços publicados em trilogias ou em coleções de fôlego — “A guerra dos tronos”, de George Martin —, que muitas vezes não deixam nada a dever a potentes clássicos como um Ulisses ou uma Odisséia.

A décima acusação também se dissipa quando observamos a massa se interessar cada vez mais por temas históricos, ou antologias de melhores contos/poemas, que guardadas as devidas proporções, no fundo são uma história da literatura.

O undécimo ponto é que a cultura de massa produz apenas para o entretenimento e lazer, exigindo apenas o nível superficial de nossa atenção e prejudicando a verdadeira fruição estética. Esta questão relaciona-se estreitamente a aceitação dos mencionados níveis de cultura, questão já superada. Para além disso, é preciso ter em conta que o modo de interação com o mundo e os livros não é mais o mesmo. As coisas estão mais instantâneas e aceleradas e “atenção exclusiva e fiel” não é mais possível nos dias de hoje. Atualmente possuímos outras formas de fruição da arte e, isso, não está diretamente relacionado ao modo de produção de cultura de massa, mas sim ao excesso de informação que temos disponível — que não é obrigatoriamente destina às massas.

Semelhante à quinta acusação, a duodécima questiona a imposição de mitos e símbolos de fácil universalidade, criando “tipos” prontamente reconhecíveis que “reduzem, por isso, ao mínimo, a individualidade e o caráter concreto não só de nossas experiências como de nossas imagens, através das quais devemos realizar experiências”. Por sua vez, a décima terceira acusação afirma que a cultura de massa trabalha sobre “opiniões comuns”, desenvolvendo uma ação socialmente conservadora. O filósofo Cioran afirma que “as experiências subjetivas mais profundas são também as mais universais, pela simples razão de que alcançam o fundo original da vida.”

[ref]CIORAN, E.M. Nos cumes do desespero. São Paulo: Editora Hedra, 2012.[/ref] Assim, é esperado que seja preciso usar símbolos facilmente reconhecidos por todos, bem como opiniões comuns, para que as histórias sejam universais, pois são os sentimentos mais universais que interessam a todos, o que há de humano em nós: amor, dor, sofrimento, vingança, perda, separação, superação. É natural que estejamos todos em busca de algo com o que nos identificar. Neste sentido, o mercado editorial contribui de certa forma com a reafirmação do que já pensamos, mas simultaneamente, também nos oferece novas maneiras de ver aquilo que já pensamos.

Em consequência de seu conformismo aos princípios sociais, religiosos e das tendências políticas conservadoras, a cultura de massa é acusada de favorecer a produção orientada para modelos oficiais (14ª acusação). Unindo-se a esta, finalmente, a décima quinta acusação afirma que ela serve de instrumento educativo paternalista, na superfície, individualista e democrática, mas na profundidade uma “superestrutura de regime capitalista”, usada para controlar e planificar consciências. Nestes últimos aspectos, podemos observar uma grande parte do mercado editorial brasileiro trabalhando para a manutenção dessa superestrutura, principalmente as editoras que se beneficiam dos editais governamentais para compra de livros.

4. CULTURA DE MASSA: 9 ARGUMENTOS DE DEFESA

A primeira tese de defesa propõe que “a cultura de massa não é típica de um regime capitalista. Nasce numa sociedade em que toda a massa de cidadão se vê participando, com direitos iguais, da vida pública, dos consumos, da fruição das comunicações”. Essa visão é um pouco romantizada quando a cotejamos com o observado no mercado editorial, pois, por mais que o acesso aos livros tenha sido popularizado, ainda assim está associado àqueles de maior poder de consumo. Mesmo o acesso às bibliotecas não é o suficiente para superar essa associação. Contudo, com o surgimento do modelo digital, especialmente através da pirataria, finalmente avançamos um pouco na democratização do conteúdo — embora o acesso à internet também esteja associado ao poder econômico e, mais grave, de localização em centro urbanos. Curiosamente os livros mais pirateados são aqueles que pertencem à dita cultura de massa.

A segunda tese de defesa argumenta que a cultura de massa não tomou o lugar da cultura superior, mas se difundiu junto às massas, antes sem acesso a elas. Conforme vimos anteriormente, o conceito de cultura superior é difuso. Por exemplo, embora Shakespeare possa ser considerado alta cultura, ele é um campeão de vendas. Como então classificá-lo?

Também baseado na ideia valorativa da cultura, outro argumento a favor da cultura de massa é que a quantidade pode reverter-se em qualidade, o que não se pode verificar quando deixamos de classificar as obras de acordo com pré-conceitos estéticos injustificados.

Exemplificando que o gosto popular pelas formas de entretenimento menor sempre foi preponderante, entramos na quarta defesa. Os meios de massa não promovem tais entretenimentos por vontade própria, mas para suprir uma demanda existente. Tal como outros produtores de cultura, os editores também procuram oferecer, desde o início, o que é demandado pelos leitores. O primeiro movimento não vem da oferta, e sim da demanda. De acordo com o gosto da maioria dos leitores, surgem modas que são seguidas pelos editores, produzindo diversos livros semelhantes, em um ciclo contínuo, até que surja um novo interesse. É o fato de que uma maioria se interessa por algo que afere o título de “cultura de massa” a esse algo, e não o contrário.

A quinta defesa afirma que uma homogeneização do gosto permitiria o surgimento de uma sensibilidade nacional, eventualmente, eliminando castas. Considerando que a maior parte da produção do mercado editorial brasileiro é oriunda do exterior, se houvesse uma homogeneização da sensibilidade nacional, esta estaria pautada pelos gostos internacionais. Em um mundo globalizado, é fácil crer em uma planificação dos gostos. Porém, podemos observar que, se por um lado crescem as publicações homogeneizantes, por outro, as pequenas editoras fomentam a bibliodiversidade, garantindo a individualidade das preferências estéticas de grupos menores.

Conforme apresentado na sétima acusação, a sexta peça de defesa argumenta que a cultura digest possui função estimulante. Assim, de acordo com os exemplos já citados, realmente observamos novas que “roupagens” mais simplificadas de textos mais complexos podem ser extremamente atrativas ao leitor contemporâneo.

A sétima e oitava defesa são relativas ao excesso de produção e informação gerado pela cultura de massa. Embora a difusão dos bens culturais, quando se torna intensiva, embote nossa capacidade receptiva, a pluralidade de informações e conteúdos à nossa disposição nos permite uma maior propensão à sensibilidade. Se antes tínhamos apenas umas poucas obras para escolher, agora podemos optar entre miríades de livros, dos mais diversos estilos, para suprir nosso desejo de informação e/ou entretenimento.

Por fim, embora os Apocalípticos considerem a cultura de massa essencialmente conservadora, os Integrados defendem a ideia de que estilística e culturalmente ela não é, pois se por um lado ela perpetua os valores sociais já estabelecidos, por outro, ela constitui novas linguagens, introduz novos modos de falar, novos estilemas, novos esquemas perceptivos. Neste ponto, observamos grande parte da produção editorial contemporânea realizando avanços significativos em vários campos. Primeiramente, é preciso considerar a evolução das técnicas de produção. Agora os livros podem possuir formatos diferenciados, que muitas vezes são acompanhados pelos conteúdos. Os livros eletrônicos permitem uma leitura em hiperlink (embora ainda linear, não é mais cronológica). O design dos livros impressos também é capaz de alterar as formas de narrativa. O texto torna-se imagem e vice-versa. Além da evolução tecnológica, também vemos os autores e leitores se relacionarem de formas diversas com os livros

[ref]CHARTIER, Roger. A aventura do livro. São Paulo: Ed. Unesp, 1998.[/ref].

5. OUTRO OLHAR: CIRCUITOS DE CRIAÇÃO E CONSUMO LITERÁRIO

Ampliando o debate entre Apocalípticos e Integrados, é interessante analisarmos uma perspectiva transversal para compreender a produção e o consumo da cultura de massa, que nos chega através do campo da bibliometria, pouco estudado e raramente usado no mercado, mas extremamente enriquecedora para ampliar o entendimento sobre o tema.

Para além dos grandes estudiosos da área, como Otlet, Estivals, Zoltowski e Garfield

[ref]Paul Otlet, “O livro e a medida” (1934); Robert Estivals, “Criação, Consumo e Produção Intelectuais” (1970); Victor Zoltowski, “Os ciclos da criação intelectual e artística” (1955); Eugene Garfield, “Historiográficos, Biblioteconomia e a História das Ciências” (1973).[/ref], é Edson Fonseca
[ref]FONSECA, Edson Nery da (org.). Bibliometria: teoria e prática. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1986.[/ref] que apresenta um interessante panorama dos circuitos de criação e consumo literário.

O circuito cronológico é, geralmente, o empregado mais amiúde. Sob a forma de uma linha reta ou de um círculo, acompanha-se a evolução de um livro, desde o autor até o leitor, passando pelo editor, pelo impressor, pelo distribuidor, pelo livreiro, pela biblioteca. Esse circuito é insuficiente. Revela-se idealista na medida em que, conscientemente ou não, faz do autor a causa primeira. O espírito está-lhe na origem. A vida econômica o segue. Reencontramos aqui o idealista comteano, para quem tudo depende, em última análise, do espírito humano. No caso, ele é apreendido em sua aplicação à criação intelectual, e foi tal perspectiva que principalmente influenciou o maior número de bibliologistas até os nossos dias (…) (FONSECA, 1986, p.36)

A partir desta observação inicial, Fonseca distingue dois ciclos de produção diferentes e complementares. No primeiro deles, a massa de leitores, devido sua amplitude quantitativa e as flutuações de seus gostos, orienta a produção. Por sua vez, os editores, intuitiva ou intencionalmente, buscam de forma sistemática, por estudos de mercado e análise de dados, acompanhar e satisfazer as orientações de seu público, objetivando o lucro. Eles avaliam a disponibilidade de materiais, de fornecedores, de distribuidores, de pontos de venda para garantir a máxima lucratividade dos bens que produzem, muitas vezes, verticalizando a produção internamente e criando uma estrutura na qual a mesma empresa é responsável por todos os processos produtivos, da impressão à venda. Para estes editores, o autor torna-se um trabalhador assalariado, recrutado quando preciso para fornecer a matéria prima editorial do momento (o texto), cuja necessidade surge a partir de pesquisas de mercado aplicadas para satisfazer um público previamente determinado.

O segundo circuito, refere-se à vanguarda e à inovação, sendo distinto, desde o início, do precedente. Neste modelo, o autor não pretende se integrar ao circuito de consumo e servi-lo. Ele é um anticonformista animado por uma vontade de criação livre. Segundo Fonseca, esse tipo de criação literária desenvolve-se de uma forma dialética, partindo do individuo (o artista, escritor), atingindo o social, para finalmente retornar ao indivíduo.

Esse primeiro tempo é feito desse impulso anticonformista. Mas não passa, ainda, de um desejo relativamente informal. Ele impulsiona o criador a encontrar a experiência coletiva na disciplina que o interessa e, em seguida, a tentar situar-se em seu ponto máximo de desenvolvimento. Nisso, encontra ele outros indivíduos animados de motivações correlatas. Sua associação dará origem à geração e ao movimento literário, os quais não podem existir sem que um influxo coletivo geral lhes dê nascimento, influxo no qual a origem e as flutuações econômicas não são de modo algum negligenciáveis. (FONSECA, 1986, p.37)

Enquanto a massa é impulsionada por um novo interesse em um dado domínio e o circuito de produção de consumo se orienta para atender este público, o vanguardista, atuando no mesmo domínio, dirige-se para inovação. Todavia, o movimento deste último não poderia se desenvolver sem a materialização de sua obra, isto é, a impressão, distribuição e venda. Neste ponto, ele ainda se encontra excluído do circuito de consumo da massa leitora. No início, dificilmente um editor se deixará persuadir para publicar sua obra, forçando o vanguardista a constituir seu próprio circuito de produção, o qual atribui ao editor um papel secundário e, ao impressor, o papel essencial. Assim, é por meio do autofinanciamento — ou a autopublicação, bastante recorrente no século XX

[ref]Dentre muitos outros, autores como Paulo Leminski e Clarice Lispector financiaram alguns de seus próprios livros.[/ref] — que o vanguardista se lança. De igual modo, é ele também o próprio responsável pela venda e distribuição de seus livros.

Entretanto, com o tempo, a vanguarda cria lentamente um público que anseia pela novidade. Tal público se amplia progressivamente até o momento em que, após alguns anos, surge um novo nicho de mercado, e os editores arriscam-se a reestabelecer o circuito de produção a partir da vanguarda. Desta vez, o artista abandona o circuito paralelo que tinha criado e se reintegra no circuito de produção de consumo.

Estes dois circuitos são complementares, mas o primeiro deles é quantitativamente mais importante, pois é a partir dele, com vistas a satisfazer a massa leitora, que o mercado de publicações principalmente se orienta.

6. CONCLUSÃO

A inquisição estabelecida ao redor da “cultura de massa” encontra acusadores e defensores convincentes de ambos os lados. Posicionar-se perante a corte que se constituiu para seu julgamento é uma empreitada que exige daqueles que desejam participar do embate também um alto grau de preparação e, talvez, alguns bons anos de estudo.

Vale relembrar que o objetivo deste artigo não foi tomar partido entre os contentores, mas observar de forma diletante — como quem passeia por um parque — embora com algum rigor, os argumentos apresentados pelos debatentes, distinguindo o comportamento da atual produção editorial brasileira com relação à publicação dos livros orientados para as massas.

Ao longo do percurso que fizemos, possivelmente tenhamos mais confundido do que esclarecido os argumentos. Contudo, fez-se presente em todos os momentos a ideia principal de que o mercado editorial brasileiro, desde seu início, e durante toda sua trajetória, sempre se orientou pelo desejo do público leitor.

Observou-se também, com certa frequência, que a noção dos níveis de cultura — alta, média e baixa — não se sustenta em seus moldes tradicionais quando aplicada à produção de livros no Brasil.

Por fim, cabe destacar que a valoração da cultura de massa em termos de “boa ou má” é estéril, pois essencialmente ela é multifacetada, tendo seus aspectos positivos e negativos. Evidentemente o debate é válido, principalmente quando se trata de compreender melhor o fenômeno, mas desde que contribua para o aprendizado das potências do que a cultura de massa pode oferecer. Não se trata do que ela é, mas do que ela pode ser, de forma que a possamos utilizar a favor de nossos objetivos, quer sejamos Apocalípticos, quer sejamos Integrados.

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