Fernanda Hamann, nossa professora da pós-graduação em Escrita Criativa, foi recentemente selecionada para fazer parte do Criar Lusofonia. O programa mantido pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal funciona como uma residência literária. Já passaram por ali nomes como José Eduardo Agualusa, Ondjaki e Miguel Real. Fernanda embarca só em junho, mas antes conversou conosco, para contar um pouco sobre as suas expectativas, falar sobre o Zuca, romance que será um fruto da residência e também falar sobre as relações entre literatura e psicanálise, sua especialidade.

Happy Hour – A Criar Lusofonia é uma residência importante. Passaram por ela nomes como José Eduardo Agualusa, Miguel Real, Ondjaki e Pedro Rosa Mendes. Como você recebeu a notícia de que seria uma das próximas?

Fernanda Hamann – Eu acho que recebi com certa surpresa. São apenas duas vagas por ano, sendo que uma é exclusivamente para portugueses. E é uma residência excepcional porque a gente recebe quatro meses de apoio, com a chancela do Centro Nacional de Cultura e do Ministério da Cultura português. E mais do que isso: depois o livro recebe uma projeção internacional. É uma bolsa que qualquer escritor, na minha situação, quer receber. Me dediquei muito ao projeto e recebi com surpresa, mas também com muita alegria

HH – Lá, você vai se dedicar ao Zuca, seu novo romance. Fale um pouco sobre ele.

FH – O Zuca foi uma ideia que me veio, tendo em mente que a Criar Lusofonia é uma bolsa voltada para a comunidade de países lusófonos. Comecei a pensar como é a relação entre esses países. O livro nasceu do que pude escutar de pessoas brasileiras que se mudaram para Portugal e o que elas enfrentam de preconceito e discriminação quando chegam lá. E o que eu achei mais importante é que, em geral, são pessoas brancas, ricas, bem-sucedidas no Brasil e quando chegam em Portugal, elas sofrem preconceito que aqui elas nunca sofreram. Eu sinto que o jogo se inverte. Muitas vezes, essas pessoas são agentes de preconceito contra pessoas negras ou contra pessoas com situação financeira menos abastadas. E aí, elas que sempre foram agentes, se tornam vítimas de preconceito. Eu achei essa virada interessante para pensar o preconceito como uma questão estrutural, humana e não fulanizada, de fulano ou sicrano, uma questão particular, de um país ou de outro, de uma pessoa ou de outra.
A gente acabou de ver uma situação de apologia ao nazismo em um podcast aqui no Brasil. O artista contemporâneo precisa estar sintonizado com o seu tempo. Talvez o projeto tenha sido escolhido justamente porque ele fala de uma urgência contemporânea de fazer os diferentes dialogarem. É preciso estimular o pensamento democrático e a tolerância ao outro. Acho que essa ascensão dos discursos de direita e xenófobos é uma coisa preocupante e eu espero que o livro possa contribuir para essa discussão amadurecer.

HH – Além de escritora, você é psicanalista e se especializou na relação entre essas duas manifestações. O que elas guardam de comum?

FH – Na minha formação, foram duas carreiras que fui desenvolvendo paralelamente: a escrita literária e o exercício clínico da psicanalise. E eu me angustiava muito achando que eu ia ter que escolher uma das duas; que eu nunca seria uma boa psicanalista ou uma escritora se eu não fosse 100% uma ou outra. Então, há dez anos eu tenho pesquisado a relação entre as duas. Nesse tempo, fui entendendo que elas têm muito a ver uma com a outra. São duas práticas de linguagem, que acontecem no laço com o outro e que produzem efeitos. A psicanalise produz efeitos éticos: a posição que o sujeito ocupa no mundo e na vida. Já a literatura produz efeitos estéticos que, em certa medida, também podem afetar o modo como o sujeito se relaciona com o mundo e com a vida. São duas práticas que têm muito a ver com outra.

HH – Quais oportunidades você vê para uma pessoa que quer se especializar nessa área de escrita criativa?

FH– Eu sinto que, para os alunos do Nespe, muitas oportunidades se abrem. Primeiro porque eles têm esse acompanhamento de um tutor, do começo ao fim desses dois anos de formação. É uma pessoa que vai acompanhar longitudinalmente a evolução de cada um desses alunos, vai conhecê-los bem, vai encontrá-los uma vez por mês, vai entender as dificuldades, saber quais os talentos, os pontos fracos e fortes. A tutoria já acho um trabalho importantíssimo. Esse é o trabalho que eu faço no Nespe. Na última turma, pude ver a evolução de cada um deles e eu fiquei muito feliz. Uma outra coisa é todo o panorama que o curso oferece: noções do cenário da literatura brasileira contemporânea, a formação em marketing digital do escritor, como se promover, como usar novas ferramentas tecnológicas para divulgar seu trabalho, etc. Eu acredito que, de fato, é uma formação que pode ajudar muito quem pretende se inserir no mercado de trabalho, seja como ghost writer, ou como ficcionista ou como outras possibilidades que vejo meus alunos caçando nesse momento.

HH – O que faz um texto um bom texto? Que dicas você dá para quem está interessado em escrever?

FH – Primeiro ler muito. É impossível se tornar um escritor sem ler muito. Isso pode parecer um conselho banal, mas eu já tive contato com muitas pessoas que querem se tornar escritoras, mas não têm disponibilidade pra ler outros escritores. E eu acredito que é preciso ler, sobretudo, a literatura brasileira contemporânea. É claro que os clássicos são fundamentais, mas eu acredito que um artista contemporâneo precisa estar conectado e pensando na contemporaneidade. Muitas vezes, eles têm até um lugar de vanguarda.
O Giorgio Agamben, um filósofo italiano, fala que o artista contemporâneo é aquele que enxerga as luzes e as trevas do seu tempo. É preciso a gente estar conectado ao nosso tempo, não só com a literatura, mas também com a arte, com o cinema, com o que se produz esteticamente no nosso tempo pra que a gente produza uma obra que seja relevante nesse tempo.

HH – Você já sabe como será a sua agenda a partir de junho lá em Portugal?

FH – Eu propus uma agenda a eles e eles aprovaram. Farei entrevistas com emigrantes brasileiros em algumas cidades em Portugal. Além de Lisboa, onde estarei instalada, tem o Porto, Braga e outras cidades para onde vou viajar. Reuni contatos com instituições que trabalham com imigração. Pra mim, é muito importante saber como um brasileiro se sente em Portugal e eu vou ter o privilégio de viver isso na carne.
Além disso, o romance traz um desafio. A protagonista, sem conseguir suportar a discriminação, começa a achar que ela precisa se lusitanizar. A escrita dela começa a se tornar uma escrita lusitanizada. Essa pesquisa de linguagem é uma coisa que eu vou sentir por quatro meses no meu ouvido e isso vai se sedimentando. O tempo de estadia será muito importante.

HH – E tem uma previsão de quando o livro sai e ele já tem uma editora?

FH – A residência é mais entendida como um momento de pesquisa. Finalizada o período lá, no dia 30 de setembro, tenho o prazo de um ano pra entregar o livro. Os organizadores não fixam uma editora específica para publicar o livro. O que é certo é que ele sairá com a chancela do Ministério da Cultura de Portugal e ele será amplamente divulgado na comunidade de países lusófonos.