Ontem, o Brasil perdeu Marina Colasanti. Aos 87 anos, partiu uma das vozes mais importantes da nossa literatura. Para mim, mais do que uma notícia, é o fechamento de um ciclo que começou há quase sete anos, quando tive o privilégio de entrevistá-la.

Era setembro de 2017. Marina completava 80 anos e eu fui convidado pela editora Global para conduzir uma entrevista surpresa durante o que ela acreditava ser apenas um jantar em família.

A proposta da editora era transformar o aniversário da Grande Dama da Literatura Brasileira em uma edição do projeto Panela de Histórias, que criei com Cassia Carrenho, uma amiga querida que o livro me deu. O projeto que teve outras tantas edições funciona assim: enquanto eu cozinhava um prato, conversava descontraidamente com a pessoa.

Antes de chegar o grande dia, me coube ir até o Rio de Janeiro fazer uma prévia da entrevista com Marina, que não sabia de nada sobre a comemoração que aconteceria duas semanas depois.

Eu precisava ir além da vida e da carreira de Marina, claro, afinal, cozinharia para ela. Precisava saber dos seus gostos, das suas memórias de cozinha, o que comia quando criança.

Marina teve uma infância peculiar. Nasceu na Eritréia, uma antiga colônia italiana na África. Depois mudou-se pra Líbia e, findada a II Guerra Mundial, foi com a família para a Itália. Dessa época, se lembrava, com afeto, do gosto das cerejas embebidas em álcool que sorvia escondida na biblioteca do tio que morava na frente do Duomo de Milão.

Chegou ao Brasil ainda menina, aos 10 anos, e se instalou na casa da tia-avó, a cantora lírica Gabriela Bezansoni, casada com o engenheiro e empresário Henrique Lage, que ergueu a casa que se tornou cartão postal da cidade do Rio de Janeiro.

Contou que a chegada da família ao Brasil coincidiu com o encalhamento de um navio de bandeira italiana na Baía de Guanabara. O pai decidiu contratar a tripulação do navio encalhado para trabalhar na cozinha do palacete que serviu de casa à família. Dalí saíam pratos italianos adaptados aos ingredientes brasileiros.

Ela me contou rindo da primeira vez que comeu um mamão. “Tinha gosto de purgante”, disse completando que, mais tarde, fez as pazes com a fruta. Ela lembrou também do cheiro das dálias que eram plantadas na própria propriedade e serviam de enfeites para os cômodos da residência.

Revelou que costumava ela mesma fazer as refeições de sua casa. Gostava especialmente de feijoada de frutos do mar, que fazia, sem a falsa modéstia, muito bem.

Quando nos reencontramos semanas depois, já no restaurante escolhido para a homenagem, ela me confidenciou que a minha entrevista foi a mais esquisita da sua vida. Pudera!

Eu me lembro bem do meu estado de nervos naquele dia. A responsabilidade era imensa. Eu estaria frente a frente com Marina Colasanti, gigante. Tinha lido tudo o que podia, me preparei muito para aquela conversa. Fiz a primeira pergunta: “Ser indicada pela segunda vez ao Hans Christian Andersen; ter ganho o Prêmio Ibero-Americano SM de Literatura Infantojuvenil, no México, e lançar praticamente de uma só vez quatro títulos é uma boa forma de se comemorar seus 80 anos, né, Marina?”. Para a minha surpresa, ela me disse um singelo e singular “Não”.

Só quem já passou por uma situação dessas saberá o que estou falando. Tinha me preparado. Estava diante da nata literária nacional e eu só pensava: “Vish! Fiz uma pergunta idiota!”. A minha cara de desespero era visível. Depois de uma pausa dramática, para testar o ritmo das minhas sístoles e diástoles, Marina completou: “Um bom jeito de comemorar 80 anos é assim: com amigos”.

Ufa! A minha primeira pergunta não tinha sido tão idiota. Era só Marina me mostrando que, apesar de todos os reconhecimentos, valorizava acima de tudo as conexões humanas. Era uma lição que eu levaria para sempre.

A entrevista fluiu naturalmente depois disso. Marina repetiu para mim e compartilhou com os presentes as histórias da infância entre África e Itália, falou sobre os anos da guerra, a chegada ao Brasil, o primeiro contato com o mamão, o gosto das cerejas embebidas em álcool. Claro, falou sobre livros, sobre o amor por Affonso Romano de Sant’Anna, sobre as filhas etc.

Foi uma noite linda e confesso que voltei para São Paulo transformado. Ontem, diante de sua partida, me peguei refletindo sobre o impacto que Marina teve não apenas na literatura brasileira, mas em minha própria jornada. Sua dedicação à escrita, sua versatilidade em transitar por diferentes gêneros, sua capacidade de tocar corações com palavras – tudo isso se tornou uma inspiração silenciosa em meu trabalho como jornalista e autor.