Carol Bassin e Matheus Victor Sousa Soares são dois advogados especializados em direitos do autor e eles são os entrevistados desta semana no Happy Hour Nespe. Ela é professora do curso de Direitos Autorais para Mercado Editorial. Na entrevista, eles falam sobre a reforma da lei brasileira, plataformas de resumo de livros e a importância de se entender das leis de copyright.

Happy Hour Nespe – O copyright é um dos pilares da indústria editorial, ao lado da liberdade de publicação, portanto, um tema muito importante para quem trabalha com livros. Mas conhecer sobre a questão é uma preocupação de todos ou só daqueles que atuam diretamente com as questões que envolvem os direitos do autor?

Carol Bassin & Matheus Victor- No caso do Direito Autoral em particular – ou do copyright, como se pode se referir a uma de suas mais expressivas tradições – é um equívoco enorme querer manter a sociedade à parte, distanciada, excluída, ou, para utilizar um termo importante em nossa “sociedade da comunicação”, desinformada sobre algo que é vital para garantia do direito de criar e de ter acesso a criações num legítimo exercício de um dos pilares dos direitos culturais garantidos na Constituição.

Se todos somos criativos, se nos é reservado constitucionalmente um tal “Direito de Criar” – extraído de uma miríade de dispositivos, dentre eles, o próprio asseguramento da Liberdade de Expressão – todos podemos, em algum momento, aproveitadas certas circunstâncias e oportunidades, nos tornarmos autores.

E autores em um sentido amplíssimo do termo: o autor de um livro, de um conto, de uma partitura, de um argumento cinematográfico e até mesmo autor de um tweet ou de um vídeo viral do TikTok.

Em outras palavras, o Direito Autoral possui uma ligação com os Direitos Culturais, ligação esta que tem ficado cada vez mais forte a ponto de repelir que mesmo as questões mais complexas e delicadas sejam tratadas sem transparência, envolvendo não apenas esses autores e potenciais autores, mas também arregimentando todos que convictamente se colocam na posição de “consumidores”, de “público” ou de “audiência”. O modo como foram realizadas as principais tentativas de modificação da nossa legislação, isto é, por consulta pública realizada online, ilustram bem que o debate sobre Direito Autoral deve ser sempre levado para a esfera pública, sendo importante estimular a colaboração do máximo de pessoas e grupos possível, pois todos, em alguma medida, acabam sendo beneficiados ou prejudicados por qualquer mínima alteração na política autoral de um país.

Conscientizar, partilhar, informar são mantras que não podem ser abandonados pelos que realmente assumem e cumprem o compromisso com o aprimoramento qualquer que seja o segmento do Direito.

HH – A Europa já reformou a sua lei dos direitos autorais para incluir nela questões específicas das novas mídias digitais. Brasília tem se discutido uma reforma da nossa lei dos direitos autorais. Audiências públicas já foram realizadas e um debate importante aconteceu em torno das limitações dos/aos direitos do autor. Em que pé está essa discussão e, na sua avaliação, essa reforma sai ou não sai?

CB & MV – É sempre difícil fazer projeções ou quaisquer conjecturas (mesmo as mais despretensiosas) sobre questões que estão nas mãos das instâncias políticas. Essas estruturas e as autoridades que as representam têm, decerto, suas próprias agendas. A pandemia da Covid-19, por exemplo, exigiu uma reorientação da agenda do Poder Legislativo que, com razão, passou a tentar administrar crises e questões prioritárias de saúde pública.

Não nos parece haver atualmente no Brasil um cenário favorável para priorizar uma reforma na legislação autoral na magnitude esperada por todos que contribuíram nas audiências públicas. Qualquer alteração que venha a se realizar promete ser pontual e bastante arriscada, de modo que pode trazer mais instabilidades que benefícios.

Devemos ficar alertas acaso se leva à frente a ideia de “importar” da nova legislação europeia certos instrumentos/mecanismos aberrantes e incompatíveis com a tradição brasileira. Claro que nada impede que dispositivos estrangeiros sejam adaptados, recepcionados, uma vez que o intercâmbio entre legislações faz parte da dinâmica do Direito Autoral, vocacionado a internacionalizar desde tempos em que “globalização” era uma expressão pouco usual. Não se repele, portanto, que se possa aproveitar algumas soluções bastante criativas que constam na diretiva europeia, mas me parece mais urgente que possamos fomentar a realização de debates públicos, o incentivo à pesquisa voltadas à análise da viabilidade das modificações da legislação em um cenário pós pandêmico e, principalmente, que possamos eleger autoridades, no pleito que se aproxima, que coloquem em seus planos de governo a intenção e estimular o redesenho da política autoral brasileira.

HH – Ainda falando sobre a reforma, quais mudanças você sugeriria na nossa lei dos direitos autorais?

CB & MV – A necessidade de adaptar a legislação à realidade de produção e circulação de conteúdo nas mídias digitais certamente é uma das principais prioridades.

Outro aspecto fundamental que demanda atenção é, na medida do possível, estabelecer o alinhamento básico da legislação brasileira com os preceitos que norteiam as práticas de produção de conteúdo ao redor do mundo, em especial se considerarmos que se trata de um setor completamente globalizado e interligado.

Outra sugestão que merece destaque é a inclusão de mecanismos eficazes para propiciar três coisas: primeiro, a inclusão das Pessoas com Deficiência (PcDs) de modo factível através da ampliação ou da reescritura do rol das limitações aos direitos autorais, de modo a afirmar expressivamente que há uma função social que precisa ser observada na gestão de qualquer criação intelectual para torna-la, acima de tudo, acessível. Em segundo lugar, é preciso atentar para a necessidade de se disciplinar seriamente a questão da cópia privada, que ainda precisa encontrar seu espaço na legislação brasileira, tendo em vista que ela já foi incorporada com algum sucesso na política autoral de alguns países, mesmo que ainda venha sendo associada à pirataria no Brasil, muito por falta de uma legislação mais atualizada.

Por fim, merece atenção os contornos do Domínio Público que devem ser melhor definidos: precisamos repensar a duração dos direitos autorais, considerando os compromissos internacionais assumidos ( como a Convenção de Berna, sem deixar de avaliar outras possibilidades compatíveis com a realidade do Brasil e com o progresso da cibercultura.

HH – Uma das grandes tendências – já vistas lá fora e que estão chegando aqui – são as plataformas de resumos de livros. No entendimento da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), essas plataformas ferem os direitos do autor e questionaram na Justiça o uso comercial desse tipo de material*. Na sua avaliação, isso é um problema para a indústria do livro?

CB & MV – Bem, certamente este é um ponto sensível e sim, este é um problema da indústria do livro. Um problema dos grandes, é preciso dizer, pois toca em questões que há séculos desestabilizam o Direito Autoral no mundo inteiro. Mas vale dizer também que é uma questão que respinga no âmbito do Direito Concorrencial. É preciso ter em mente que às vezes o Direito Autoral estabelece essas relações com outros segmentos do Direito e é preciso ter cautela ao discernir o que pertence ao domínio de um e o que é pertinente exclusivamente ao outro para evitar análises imprecisas.

Sob o ponto de vista do Direito Autoral, esse problema envolve, por exemplo, o rebuscado (e questionado) sistema de autorizações que caracteriza uma parcela dos direitos autorais, que são os direitos patrimoniais do autor. Observando a legislação, é preciso que para se fazer um determinado uso de uma certa obra se obtenha a respectiva autorização daquele que é titular dos direitos. Nem sempre esse titular é o autor, embora ele seja o titular originário. Por vezes, essa autorização deve ser buscada na figura do editor que adquiriu esses direitos. A legislação não veda essa transmissão, embora a outra parte dos direitos autorais, chamada de direitos morais ou de direitos da personalidade do autor, seja inegociável pela sua natureza personalíssima. É nessa parcela que estão uma série de direitos que parecem estar sendo infligidos neste caso das plataformas. O direito à integridade do texto parece não estar sendo respeitado. Teria que analisar bem o teor do resumo para avaliar se realmente essas plataformas estão fazendo resumos ou se deformam a obra a tal ponto que podem descredibilizar seu autor ou ainda prejudicar a negociação e circulação da obra.